segunda-feira, abril 27

Literatura: O maior dos escritores

"Dificílimo acto é o de escrever, responsabilidade das maiores (...) Basta pensar no extenuante trabalho que será dispor por ordem temporal os acontecimentos, primeiro este, depois aquele, ou, se tal mais convém às necessidades do efeito, o sucesso de hoje posto antes do episódio de ontem, e outras não menos arriscadas acrobacias (...)"

Uma série de crimes me desejam os dedos escrever que existem e que não aliciam a qualquer punição senão a da consciência sobre nós próprios. São esses crimes aqueles que cometemos por praticar o gesto ou a acção que, sem ferir susceptibilidades ou vontades, bem sabemos estarem errados na óptica moral. Iniciar um artigo por palavras que não se produziram e não se ordenaram segundo o meu modo de o fazer - foi a via preferível, entre outras de que dispunha, para me fazer fugir com habilidade ao risco tormentoso de me descair num desses crimes morais: não considerando para já o meu mais sagrado pasmo por José Saramago, seria errado, simplesmente errado e com uma dose forte de absurdo, iniciar um artigo que lhe é dedicado com palavras escolhidas por alguém que não seja por este escritor maior que todos os outros. Seria correcto, a título de exemplo, divagar acerca de génios como Garrett ou mesmo, elevando a fasquia a um nível superior, como o enorme Camões, iniciando determinado artigo a eles dedicado com palavras de José Saramago. Isto que agora escrevi poderá ser alvo das mais variadas críticas; poderão dizer que atribuo um valor acima do real a uma personalidade em que tantos descobrem os mais irreais defeitos, poderão considerar de mau tom uma adoração tão perceptível a alguém que, aos olhos de tantos, viola as regras da escrita e da pontuação, em particular. Não me sento nem escrevo no presente momento para agradar a troianos nem a gregos, simplesmente me deixo andar, percorrer o teclado e as palavras com os dedos, à semelhança deste escritor sobre que me debruço. Regressando aonde me deixei - seria correcto iniciar com Saramago um artigo referente a um qualquer vulto da literatura portuguesa porque este português é superior a todos os outros escritores deste país, ou equipara-se ao maior pela sua qualidade e lucidez, além do pesado facto de se encontrar neste mundo e não naquele aonde nos dirigimos na companhia da morte. Este artigo e os quatro seguintes, por todos estes factores meticulosamente ponderados, será a maior homenagem por mim prestada neste ano no âmbito deste projecto a uma figura qualquer da literatura portuguesa. O melhor aos melhores.

As frases que transcrevi para o começo do artigo integram uma obra de ficção de José Saramago, publicada no ano de 1986, de seu nome "A Jangada de Pedra". Mostro particular interesse por esta sua declaração pela consagração que o próprio autor faz ao seu génio nato: como para qualquer escritor, a escrita é-lhe um processo de extrema exigência que extenua pelo trabalho que lhe temos de dedicar No entanto, José Saramago escreve como ninguém - testemunhos disso são todos os prémios literários nacionais e internacionais que já venceu, não restando nenhuma importante condecoração para lhe ser atribuída. Tal sucesso, se se acha difícil o processo de criação, deverá chegar a partir de um génio mais elevado que nunca ninguém conheceu.

Saramago nasceu numa aldeia que, apesar de tão pequenina como a vou desenhando na imaginação, fica na memória de muitos seguidores da obra deste escritor. A aldeia é Azinhaga, fica no Ribatejo e lá vivia a sua família pobre, constituída por pais e avós. As imensas dificuldades e privações da sua família convidaram-na a partir para as oportunidades mil que a capital, Lisboa, aparentemente oferece. E não é negável que a cidade do Tejo concedeu a Saramago condições francamente melhores para viver a sua infância do que na sua aldeia de Azinhaga. Cedo foi forçado, todavia, por dificuldades financeiras, a abandonar os estudos, muito embora todos percebessem o seu empenho fabuloso na área da sua educação. Nunca abandonou a busca pelo conhecimento como a muitos sucede, após deixar a instituição de ensino; tornou-se um autodidacta até aos dias de hoje, conservando um leque vário de empregos que lhe foram surgindo, nos quais José Saramago, ou em quase todos eles, revelou invulgar capacidade de trabalho e até algum espírito de sacrifício e um desproporcionado sentido criativo e crítico. Quando a sua origem popular se manifestou, sendo levado a sair da escola, formou-se numa escola técnica para, muito em breve e com urgência, conseguir um sustento que chegaria por meio de um emprego; esse emprego chegaria depressa. Numa oficina, reparando carros, ganhou o seu primeiro ordenado.

Por muito que se exerça uma profissão exigente, o comportamento mais natural da espécie a que pertencemos é o de chegar ao nosso lar, após um dia longo de trabalhos vários, vítimas de grande desgaste físico e de cabeça, e logo nos recostarmos a repousar. Ou, ao menos, a vontade aponta nesse destino das nossas coxas. Tal desejo profundo rompe na rotina diária de trabalhadores dedicados e de trabalhadores que pouco levam a sério a sorte do emprego que mantêm. Porém Saramago, contando também a sede cultural da vida que levava, procurava muito frequentemente a Biblioteca do Palácio Galveias, em Lisboa, onde se retirava na leitura em muitos dias por semana, após o fim do seu horário laboral. O rumo dos corpos, mesmo dos nossos, define-se desde cedo e cedo se principia a manifestar; mesmo o de uma simples seta, que sem voar na época em que é feita, vê o seu destino escrito na forma que lhe demos e que a fará poder voar, assim como no destino que tiveram todas as outras setas suas semelhantes que mostravam os mesmos atributos que ela e que partilharam esse mesmo destino. O caminho dos interesses e da vida de José Saramago, se já se comportavam no seu psíquico, aqui se tornaram evidentes para o próprio e para os próximos. Não alvitro, nem tenho ainda capacidade e conhecimento de facto suficiente para alvitrar sobre que género de livros, na altura, José Saramago preferia. Possivelmente que um dia possa dizê-lo. Por isso, e não resistindo, romancearei por umas linhas o comportamento de José Saramago na biblioteca de Galveias. O jovem, no qual pouco se revêem os esforços do longo dia de trabalho que o explorou, viaja entre os espaços que são reservados às pessoas no reino dos livros que é cada biblioteca. Encosta a mão a um livro, a pele treme na emoção, na ansiedade de descobrir que sonhos, que experiências, que novo género de coisas diversas a pessoa adquirirá com a prática da leitura daquelas centenas de páginas. Mas o livro que ele toca não é isolado, como uma família vive esse livro na companhia de tantos outros que chamam a mesma atenção a José Saramago. E então, por muitos dias, meses, anos, José virá à biblioteca, reter-se-á na contemplação de letras e no fascínio das palavras, até que esgote os livros ou se inicie na redacção dos seus próprios.

Outros empregos que José Saramago encontrou foram mais de encontro àquele Saramago das letras que hoje todos conhecemos. Aquela figura que todos imaginamos, de José Saramago de calva, ombros encolhidos e caneta sobre uma folha branca, óculos na face apontados a baixo, demonstrando concentração, já então se iniciara. Esses empregos eram em periódicos, como o Diário de Notícias e o Diário de Lisboa, e também como tradutor de literatura. No ano de 1947, aos 25 anos, consegue publicar o primeiro romance que propõe aos editores: Terra do Pecado. Anos depois, redige Clarabóia, que, rejeitado, permanece no desconhecido das estantes até aos dias de hoje. Com isso, dedicar-se-á mais ao teatro e à poesia, antes de regressar em definitivo à prosa - género literário em que se tornou o melhor dos melhores. O crescimento e amadurecimento de José Saramago enquanto escritor afastou, progressivamente, os empregos que conservava. Começa então a viver apenas do seu trabalho literário, a início ainda mantendo a ocupação de tradutor, mas depois sendo simplesmente um criador, o mais promissor e, mais tarde, o mais lido e reconhecido escritor português em Portugal e no Mundo inteiro.

Ainda hoje José Saramago é dos mais ilustres e interventivos membros do Partido Comunista Português. As suas convicções, noutras áreas, incluem a defesa do iberismo e do ateísmo. O segundo, obviamente destacado nas suas obras, significa a absoluta negação de qualquer entidade divina e instituição religiosa. O iberismo, menos divulgado e reunindo um menor número de apoiantes, é o nome dado à doutrina que defende uma única raça ibérica de humanos: a união entre Portugal e Espanha em todos os aspectos, feita excepção talvez à língua. O iberismo de Saramago, para as mentes mais humoristas, expressa-se de igual modo no seu segundo casamento, que para o bem dura até ao presente. José Saramago é casado com Pilar del Río, a quem dedica a grande maioria das suas obras, e vive com ela em Espanha, nas Ilhas Canárias, desde o início da década de 1990, mantendo, ainda assim, a sua casa de Lisboa. O motivo da sua deslocação definitiva para o país vizinho será abordado no próximo artigo de literatura deste espaço, em que tratarei a obra e a escrita de José Saramago, com a ajuda do inquérito que está, já vai para meses, neste blogue e cujo efeito ainda ninguém acertou.

Haja saúde e alegria para todos.

1 comentário:

IsacTamente disse...

Muito bom artigo. Excelentemente escrito, como sempre.

Adoro o José Saramago, e sim, ele é muito grande. Dos portugueses que mais admiro.

Só tenho pena dele defender o iberismo e o ateísmo...enfim, não há pessoas perfeitas...nem os escritores...por maiores que eles sejam eheheh